A resposta deveria ser NUNCA, mas não é, pois a prática da medicina atual vai muito além do anseio do médico e da família em salvarem o enfermo.

As indicações do transplante de fígado estão bem estabelecidas.

Pacientes cirróticos com descompensações manifestadas por ascite, encefalopatia, hemorragia, com exames classificando-os funcionalmente como Child-Pugh B ou C ou MELD ≥ 15 ou presença de hepatocarcinoma ou situações mais raras como doenças metabólicas incapacitantes (por ex: PAF, Doença de Wilson) ou síndromes compartimentais (como na doença policística) são indicados para serem incluídos nas filas de espera.

Entretanto, alguns pacientes mesmo que sua única alternativa seja o transplante, tornam-se muito graves e a cirurgia passa a oferecer chances menores, risco elevado e alto custo. Estas situações, quando a chance de sucesso é baixa e o fígado doado, recurso escasso e necessitado por tantos, acaba sendo utilizado e perdido junto com a vida do receptor que não resistiu ao procedimento, são chamadas por alguns autores de transplante fútil.

Segundo alguns transplantadores, na fila do transplante, alocar mal um órgão para um receptor sem chances significa sacrificar a vida de dois pacientes, que são o que receberá o órgão e não resistirá e outro na fila que tinha mais chances e deixou de recebê-lo.

Estas situações são sempre escolhas difíceis mas cada vez mais frequentes, pois o sistema de distribuição dos órgãos favorece os pacientes mais graves e, então, como dizer NÃO a alguém que esperou na fila e assistiu muitos mais graves passarem na sua frente e, quando seu quadro agravou-se pode tê-lo levado a uma gravidade além da aceita pela sua equipe?

Como então se define quando dizer NÃO?

Não existem critérios objetivos pra isso. A equipe toma estas decisões baseadas na sua experiência e nos seus resultados diante da gravidade enfrentada.

Outro fator que influencia decisões de alguns centros é que, infelizmente, os financiamentos dos transplantes são feitos através de pacotes que não levam em conta a gravidade do paciente. Como todos sabem, quanto mais grave, menores as chances de sucesso e, para os que o alcançam, mais tempo e mais recursos demandam a recuperação, elevando o custo do tratamento. Assim, transplantar pacientes muito graves seguidamente pode comprometer as finanças da instituição e tornar o transplante um procedimento pouco atrativo, levando a redução ou interrupção do programa de transplantes. Além disso, os resultados dos transplantes são rigorosamente controlados pelo governo, como nenhum outro procedimento no sistema de saúde, e as instituições que resolvem oferecer uma chance aos pacientes muito graves, por menor que ela seja, podem ser punidas na avaliação de sua performance.

Por outro lado, a muitos familiares de pacientes nestas situações de extrema gravidade interessa o investimento máximo, por menor que seja a chance de sucesso, e poucos compreendem a lógica do sistema e das equipes que podem considerar o transplante como fútil.

Realmente, em qualquer doença, o relacionamento médico-instituição-paciente e médico-instituição-família é tão mais forte quanto maior o envolvimento e investimento da instituição e da equipe buscando a chance de vida do enfermo, não importando o quão pequena ela seja. Funciona assim nos casos de internações para tratamentos de infecções de qualquer origem, nos casos de câncer, nas doenças cardíacas ou de qualquer outra origem, sendo de certa forma frequente a frase, que consola familiares e equipes de saúde, para doentes muito graves que vêm a falecer: “perdemos o paciente mas pelo menos tentamos de tudo”.

Entretanto, o que difere os transplantes de todas as outras doenças, é a escassez de órgãos.

A escolha do paciente muito grave que ainda tem condições de ser submetido a transplante de fígado tem sido feita caso a caso, conforme a experiência e resultados da equipe médica em cada situação analisada.

Existem poucos estudos que fazem este tipo de avaliação.

Certamente, também existem muitas diferenças institucionais na inclusão destes receptores em fila, mas estas diferenças também ocorrem em várias etapas do transplante, como aceitação de doadores distantes, seleção clínica dos doadores e compatibilização doador receptor, o que faz com que as filas de várias equipes “andem” em ritmos diferentes para pacientes semelhantes.

Recentemente foi publicado um artigo na revista Clinical Liver Disease (CLINICAL LIVER DISEASE, VOL 8, NO 6, DECEMBER 2016) que propõe um balanço entre as vulnerabilidades e as condições responsivas dos pacientes em lista. Deve-se entender como vulnerabilidades as condições que reduzem as reservas fisiológicas e aumentam o risco de evolução adversa a qualquer agressão aguda, além de não serem reversíveis rapidamente após o transplante tais como coronariopatia, neuropatia, gastroparesia, e condições responsivas que são aquelas reversíveis rapidamente após o transplante, como ascite e coagulopatia.

Um fator agravante nos transplantes de fígado em áreas onde existem vários grupos transplantadores é a competição por órgãos. Esta situação faz com que não seja possível adequar o melhor doador ao receptor mais grave piorando as chances deste tipo de paciente receber um transplante e sobreviver a ele.

Os autores não chegam a conclusões e propõem pesquisas que no futuro possam definir objetivamente para quais pacientes deve-se dizer NÃO ao transplante de fígado.

Enquanto isso, dizer NÃO continua sendo uma atitude difícil, que deve ser sempre compartilhada com os familiares do paciente muito grave. Além do mais, deve haver transparência na informação de que a atividade transplantadora não é igual entre diversos hospitais e equipes, que seus critérios de indicação e contra-indicação ao transplante de fígado são diferentes, e que portanto o paciente deve ter total liberdade e informações necessárias para ser submetido a outras avaliações.

Cabe aos órgãos reguladores reorganizar o sistema e reavaliar a remuneração e a avaliação dos resultados por gravidade, caso contrário, a atitude protetora de resultados de cada grupo fará com que a gravidade aceita seja cada vez menor aumentando cada vez mais o risco de pacientes graves mas ainda com chances sejam colocados na categoria de transplante fútil.